quarta-feira, 22 de outubro de 2014

O ciclista e eu

Era preciso avisar
ao ciclista que atravessou
o sinal da avenida Rio Branco
com rua do Ouvidor
nos últimos segundos
do sinal vermelho:
a tua indignação
envernizou o meu fôlego
que andava sem molde
desde a rua Sacadura Cabral.

Não foram aqueles cinco segundos
que quase nos cruzaram
abruptamente;
foram aqueles cinco segundos
parada na escada rangendo os dentes
quando o tempo virou um grifo
na porta esmurrada
pela invasão.

Só queria eu
que o ciclista esquecesse
(ou num murmúrio antropológico,
que ele relativizasse)
a solidão de meus gestos
raivosos.

E soubesse,
que assim como
tantos outros pecados,
a distração é submissa
aos relinchos do amor.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

O primeiro dia

Amanheceu.
Já é Outubro.
As nuvens querem
despencar do céu
mas há uma grossa
camada de uivos
impedindo
o salto.
Esse silêncio
de mármore
impõe aos gestos
uma petulância
desnecessária.
Onde estão
as notas musicais,
abrigo dos meus
murmúrios?
Devem ter fugido
para outro horizonte
onde também se esconde
o espectro
do último sonho
da madrugada.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

É tanto céu
que até espanta
os olhos.
Os meus
se perderam
admirando
o abismo prateado
do Setor Bancário.
Ao norte
o cheiro da fuligem
gruda na pele
feito mosquito
sanguessuga.
O sol do cerrado
é enxurrada seca
pega fogo
sem ordem dos deuses.
Às 16h39
o avião decola
me levará de volta
aos braços do Redentor
mas a geometria
dessa cidade de retas
vai me acompanhar
noite adentro.
Nas ruas de Brasília
há mais carros
que corações.
Ainda assim
uma emoção nos une:
o sentimento de que
é preciso suar
para sobreviver.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Em um dia habitual, sem qualquer vestígio de sombra, dona Hilda foi sepultada. O ar quente e seco, com gosto de cerrado, tornava nossas lágrimas vapor. Dona Hilda tinha nome de poeta e um coração cordial, que às vezes sorria, às vezes calava, sempre ao tom do sossego. Ela nos amava à sua maneira, sem grandes demonstrações. Guardava em seus olhos a cor opaca do passado. Muito antes de sua partida ela já não sentia o presente pulsar em suas veias. Resignada, preferia sentir o cotidiano em sua quietude morna, observando a passagem do tempo através das folhas que se espalhavam no quintal. Quando chegamos ao cemitério, o sol já se espreguiçava, preparando o repouso. Nós ouvimos as palavras de consolo em silêncio, ao tom dela. A oração do Pai-Nosso, seguida de um samba do Paulinho da Viola, foram as últimas oferendas antes do rito final. E assim, entre palmas e soluços, ela fincou suas raízes à terra, para onde retornaremos todos, inevitavelmente. A memória tem ritmo próprio, costura harmonia ao sabor do vento. Em meus lábios ressecados, ficará o gosto daquele sol, eterno e imóvel, como as fotografias em preto e branco na parede. E assim continuaremos desbravando as súplicas derramadas no caminho. Seguiremos saudosos, envolvidos na teia visceral que nos cobre os pés, ocupados com o suor, com a fome, com a cartela anticoncepcional, com o motor do carro. Logo logo estaremos alheios. Até que chegará um dia que novamente trará à boca o gosto salgado da morte. Os sentimentos serão estampa e a vida permanecerá esplêndida, posto que o seu grande mistério é uma poderosa fonte de liberdade.

In Memoriam Hilda Marçal da Costa (29/12/1924 - 01/09/2014)

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

O menino e o avô

Os dias nublados
no Rio de Janeiro
são como os poetas escrevem:
pétalas envelhecidas.

O vento que canta aqui
é o vento que lameia lá
nas águas de um Capiberibe
atormentado pela surdina.

Ecos espalhados ao léu
o fim guardou a ribanceira
Não dão voz ao silêncio
Ouve-se só a notícia

E quem um dia sonhou
em ser o menino
que virava o avô
viu o céu virar faísca

De pés fincados ao eixo
Olhe em frente
É preciso chão
Mesmo que a aterrissagem
custe um sopro de vida

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Vivas e Vivas À Ariano



Na manhã de sol com nuvens
À caminho da praia
Foi que recebi notícia
Da sua retirada
Muito sentida eu fiquei
Com as capas dos jornais
Que lamentavam a perda
De mais um dos imortais
Quantas risadas gostosas
Eu tenho na lembrança
De João Grilo e Chicó
Aventurando nas andaças
Lembro também do avarento
Devoto de Santo Antônio 
Que se embolou todinho
Com a porca dos seus sonhos
O Nordeste que nos veste
Do Rapadura ao Chico Science 
Do maracatu ao coco
Embolada é quem nos traz
Gravado em xilogravura
Movimento armorial
Valoriza o que é nosso
Faz o gringo pagar pau
Um cortejo de cordel
Sei que o céu tá preparando
Jesus Cristo no repente
E os anjos acompanhando
Não tiveste medo da morte
Viveste a vida com bravura
Mas a tua maior mágica
Criaste na literatura
Então me despeço com ternura
Pra tristeza espantar
Viva Ariano Suassuna!
Pernambuco é o lugar!

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Falar o quê?
Não é segunda feira
pra mandar rezar
missa para as almas
é quinta
a enxurrada tem o peso
das fomes passadas

O café da manhã
teve gosto de atraso
Entre o iogurte
e o queijo brie
Pesou mais o amargo
do café
pingando na xícara
o refluxo da humilhação
Há feridas que não
evaporam com a chuva

No dia da ressaca
eu declarei sem pudor
_Te amo!

Mas o amor
não ampara
as faíscas soltas

"Eu também te amo!",
Disse você em silêncio
porque sente medo também

Falar o quê?
Que os gestos esmurram
a parede?
Que os jornais
são insetos
mortos ao fim do dia?
Que o corpo está frio
e a mente vaga em sombras?

Prefiro deixar em branco

Agora
mais que éter
é preciso chão

domingo, 29 de junho de 2014

Ponto G

Rasga os dedos com a cola que eu usei
Rasga a saia com as pedras que pinguei
Rasga o teto e o piso de tacos com os socos que gritei
Rasga o vidro da janela com o suor que te dei

Gozei gozei gozei gozei

quinta-feira, 19 de junho de 2014

#temcopahásetedias

Essa semana faz um ano
que milhares tomaram as ruas
ocupando a Alerj
e o entorno da prefeitura
na mente, vêm as cenas
da violência policial
que segue atirando pro alto
sem destaque no jornal
é muita covardia
o terrorismo do Estado
na figura de PMs
mal-educados e mal pagos
iremos resistir
como fizeram na Ditadura
se a tortura sobrevive
a nossa luta continua
Lá em Natal
calamidade pública
pode falar pra população
se abrigar na Arena das Dunas?
Todos os olhos no Brasil
só dá Copa no Mundo
mas na hora do jogo
deixa o Galvão no mudo
Arbitragem a desejar
No estilo Padrão Fifa
critério de escolha
foi a resistência física
malandragem joga isca
certeiros na atuação
jogador brasileiro
é lato sensu em simulação
do Fred ao Diego Costa
não importa a seleção
o jeitinho brasileiro
contamina todo o plantão
estatística da esquina
aqui no Rio de Janeiro
para cada três gringos,
temos uns vinte estrangeiros
Chilenos, argentinos
uruguaios, colombianos
ustedes son benvenidos
somos todos sulamericanos!
Só passou uma semana
e a Copa é um sucesso
goleadas, bom futebol
preço caro no ingresso
yellowblocs vaiam a Dilma
comendo coxinha de ossobuco
queria ver passar fome
sem Bolsa Família em Pernambuco
prefiro a Dilma Bolada
mandando beijinho no meu ombro
ao retorno da tucanada
que privatiza até os tombos
uma coisa é certa
viva a pelada!
Espanha deu vexame
Melhor voltar pra tourada
Movimento dos Sem Teto
fecham as ruas de SP
a gente quer futebol
junto com a casa pra viver
Odebrecht ama remoções
promove trabalho escravo
e ganha rios de dinheiro
com estádio superfaturado
desigualdade
a gente se vê por aqui
quando os gringos forem embora
Brasil volta a ser Haiti
o melhor do Brasileiro
é a arte do improviso
nos roubam a cidadania
mas não nos tiram o sorriso!
Enquanto isso
Mando recado pro Scolari
Muda o meio de campo
antes que a tua casa caie
Estamos na torcida
apesar dos pesares
pro Oscar e companhia
mandarem o fantasma pelos ares
sem essa de Maracanazzo
eu quero comemorar!
Mas se não for Brasil
Alemanha é nóis que tá!
Pra finalizar
um feliz aniversário
ao Sr. Chico Buarque
pelos anos completados
70 primaveras
ou melhor, 70 outonos
tantas composições
que me fizeram perder o sono
viva o melhor dramaturgo
da música brasileira
e paratodos nós
uma bela quinta feira!

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Conjunção

Se eu tinha tempo pra remoer,
eu tinha tempo de parar na janela
e ver as nuvens voando
como grandes dragões brancos

Eu tinha tempo pra ver a cidade
por onde me jogo sorrateira
no plano dos precipícios
da garganta
difícil mesmo é perguntar
por quê a gente esquece
de agradecer

Suspeitava que da segunda vez
as pérolas jorrassem
feito cascata
mas a noite era comum
e o termômetro que não existe
na esquina da rua Oriente
marcava 20ºC

Todos os poetas
(especialmente aqueles nascidos
com o Sol posicionado sob um
dos signos cardeais)
sentem a paixão no dorso
como um catavento
que nos rodopia
e nos atira
ao mosaico do caos;

portanto é inevitável
desenhar formas geométricas
na rabiola dos versos.

Tantas pedras descascadas
tantos rios esculpidos
muitas nuvens fugitivas
até que os insetos
estivessem prontos
pra iluminar
a renúncia das rédeas.

É isso.
A vida deve se enfeitar.

Só prometo o seguinte
amanhã, 13 de junho,
eu vou colocar o bilhete
escrito em letra de fôrma
pessoalmente na mão do santo:
pra que ele rogue
liberdade
a todos os nossos dias.

Enquanto isso,
vamos em frente.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Trigonometria

Costurados à mão
sob a anca de tesouras firmes
os corpos eram o caule
amarrado à fortes nós
como aqueles de marinheiro.
O bailado das ondas gingava
feito canção pra ninar
os poetas.
Os pés se foram
pela curva
na virada tinha um riacho
um sentimento saindo dos eixos
apertando a boca do estômago
causando redemoinho do ventre
aos fios de cabelo.
Dentes rangendo
a vontade de ser vampiro
tomado pelas rédeas violentas
que escapavam das laterais
dois potros
indomáveis
à beira do acústico
da orquestra desmontada
pra ter certeza de que
o melhor som é aquele
que crava marcas no pescoço!

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Como sobreviver ao encanto

Guardei as víboras do meu olhar
em uma caixa de embrulho
e te dei de presente.

Acostume-se aos novos ares
.
A fragância do instante
vai empestiar a todos
os desconhecidos.
Eles sentirão o sobressalto
mas será impossível
traduzir os espectros.

O cheiro do sexo embriagado
nos cachos do cabelo
vai atrair abelhas perdidas;

você não deve se preocupar.

Até quem sabe averiguar os segredos
vai perceber que eu estou mais
destilada que nunca.

É recomendável uma certa discrição
no uso das cores quentes:
os viciados no canal de metereologia
vão notar o verão bronzeado
em nossos sorrisos.

Os dias continuam
seu giro imperturbável
e a playlist de música vai se arrastar
até muito depois das horas de sono.

Vamos sair de casa sem atraso,
seguindo pela rua Camerino
a passos mais rápidos
que os motoristas dos carros.

Um dois três beijos
garantem a leveza do trajeto.

A cidade,
cenário sonoro do encantamento,
permanece intacta.

A paixão fincou
os dois pés firmes
nas pedras

sem nota de garantia
ou prazo de validade.